do tratado da reforma da inteligência

"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012




Café
(de Cínthya Verri - Constantina)



as xícaras são carícias
(e as pernas - tremores)

só me reconheço 
com pouco.



terça-feira, 6 de novembro de 2012




meu cabimento é inteiro
somente onde não estou
santos não guardam meu adormecer
que é pouco e lento
nessa fome sem nome
não há sabor a atiçar as narinas
e minha língua é viva
quando de tua língua a autoria da cópula
a música que anima o coreto
se faz das mesmas notas que acompanham o cortejo
os fins, enfim, justificam os meios?
cova rasa não garante esquecimento
tem missão abortada
no quarto ao lado, os filhos têm asas cortadas
há uma dor de espera na velocidade das pernas
a porta aberta garante o retorno
apenas do que ainda não se foi
varanda cercada



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A INVISÍVEL CICATRIZ de Ruy Proença


nascer
é ser novinho em folha
e já deixar cicatriz

viver
é cobrir os outros
de cicatrizes
e ser coberto


mas nem tudo
são cicatrizes

algumas incisões
definitivamente
não se fecham

por isso
aliás
morremos

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012


Letra de música toda trabalhada em decassílabo heroico, onde o acento recai na sexta sílaba. Caetano é Caetano e essa canção é linda!

O quereres

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim



segunda-feira, 24 de setembro de 2012





sou tudo que sinto enquanto me faltas
e é quando sonegas tua voz que te conheço
à sombra do medo durmo sossegada
na parecença do breu construo pássaros de papel
com suas asas imóveis e olhar gradeado
nas noites quietas, mais é abundante o orvalho
a respiração de nuvens brancas
pede água a plenos pulmões

porque desfrutei de um solo fértil
jamais me perdoarei o fracasso em cultivá-lo
no tempo ávido que devora com mandíbulas cínicas
sou minha própria plateia
lá fora, cães ferozes rosnam por liberdade
mesmo com todo o seu perigo
será que vou encarar minha morte
sem jamais ter sentido que vivi?
quantas mortes a cada escolha evitada,
em cada pensamento natimorto

há um quanto de verdade que se consegue suportar
já que a visão da descoberta
pode trazer à tona a vontade de arrancar os próprios olhos

quero ser condenada a escapar da vida perigosamente segura
abrir à porta uma pequena fresta

não me desvencilhei daquela primeira pele
e ainda assim, permaneço predadora
minha autoconsciência vem tarifada pelo desespero
e a inocência me matou de fome

se me afasto do conforto do rebanho
não estou fadada a uma vida vigilante
tal qual aquela de um mentiroso?

falo comigo não muito alto
temendo escutar tudo que digo
acumulo mentiras em uma poça estagnada
que evapora ao sol do meio-dia


(de BREU RENDADO)

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

    Não posso deixar de citar, aqui, o poema de Carlos Pena Filho:
    Soneto do Desmantelo Azul
    Então, pintei de azul os meus sapatos 
    por não poder de azul pintar as ruas, 
    depois, vesti meus gestos insensatos 
    e colori, as minhas mãos e as tuas. 
    Para extinguir em nós o azul ausente 
    e aprisionar no azul as coisas gratas, 
    enfim, nós derramamos simplesmente 
    azul sobre os vestidos e as gravatas. 
    E afogados em nós, nem nos lembramos 
    que no excesso que havia em nosso espaço 
    pudesse haver de azul  também cansaço. 
    E perdidos de azul nos contemplamos 
    e vimos que entre nós nascia um sul 
    vertiginosamente azul. Azul.   
                                                          

segunda-feira, 3 de setembro de 2012


Está aí o prefácio do meu terceiro livro de poesias, BREU RENDADO, por Ronald Augusto:

A leitura noturna de Breu rendado:

Borges escreve em algum lugar, a propósito do jogo entre o fortuito e o forçoso, que quando alguma coisa acontece apenas uma vez estamos frente ao acaso; se acontece pela segunda vez pode ser que indique uma coincidência feliz ou não. Por outro lado, se o evento ocorre uma terceira vez trata-se já de uma confirmação.

Pois bem, o leitor está prestes a mergulhar entre as capas do terceiro livro de poemas de Deisi Beier intitulado Breu rendado. Deisi daria a entender com essa metáfora sua apetência por uma linguagem mais fechada ou rente a uma obscuridade virtuosa, espécie de corolário da razão poética? Não precisamos tentar responder à questão, inclusive porque seria limitador do estranho prazer proporcionado por tal poesia. Mas voltemos à ilusão de Borges. 

De acordo com a imagem triádica do escritor argentino poderíamos, por outro lado, indagar: com que espécie de confirmação, em fim de contas, nos deparamos lendo Breu rendado? A pergunta não pretende projetar conclusões a respeito. Ao mesmo tempo é bastante possível constatar, por meio de uma precisa reiteração, essa confirmação borgeana calcada no número três, para tanto, basta lembrar os títulos das duas primeiras obras da poeta, a saber, Tramas de orvalho (2007) e Córrego de amarras (2010). Dentro desta sequência coincidente onde prevalecem na materialidade verbal (“trama”, “amarra”) equivalências e desdobramentos lexicais evocativos de fio, rede ou liame, bem como projeções semânticas ligadas ao entrecho, à prisão e à doença (uma das acepções para “trama”), mas em sentido de pathos: as paixões da alma – e não seria demais lembrar ainda a tela com que Penélope ludibria seus pretendentes, desfazendo à noite a urdidura feita por ela à luz do dia –; muito bem, além disso, temos, agora, Breu rendado, que, por sua vez, enreda (arremata?) numa coesão de forma e fundo esse novo discurso, esse novo objeto verbal ofertado ao leitor.

Estamos, portanto, no centro de uma tensão entre o fechado e o aberto. Breu rendado supõe uma relativa obscuridade conquistada e estruturada sobre escolhas expressivas. O difícil (“breu”) em poesia não pretende cancelar a participação do leitor, o difícil está no poema (a rede, a trama, a renda) como um convite à colaboração e à sugestão. Deisi faz a si mesma essa pergunta subjacente ao trabalho compositivo de qualquer poema: como dizer o que vejo tão claro? Mas, paradoxalmente, o resultado o mais das vezes – como de resto acontece com todos os poetas na busca da melhor expressão – é o da opacidade ou, melhor, de uma fungibilidade do significado ante a complexa beleza do escrito. Aquilo que o poema tenta figurar e que, a princípio, o justificaria enquanto forma estética acaba por escapar da vista do seu criador. Mas é aqui que o leitor se torna decisivo, pois ele reinventa o poema; o significado não está mais no poema (aliás, nunca esteve), mas no leitor. Na superfície têxtil dos poemas de Deisi Beier o leitor deve estar disposto a apalpar, aqui, um “bloco de nudez e escuridão”, ali, vestir “as trevas guardadas nas roupas” e, mais além, aceitar que as palavras vazem de seu vazio. Palavras, férreas como o silêncio do escorpião.  

Na verdade, temos aqui o fotograma/extrato de um percurso textual em movimento e que não capitula ao cumulativo; não é livro que se publica como meio para fazer “carreira nas letras” como se verifica facilmente num rápido olhar ao panorama da produção literária recente. Breu rendado trata-se de um autorretrato fugidio, esboçado a partir do desejo de linguagem da autora e de uma deriva semântica (razão do poema) que se desdobra em interpretações pertinentes ao leitor; uma questão imprecisa que a poeta se coloca a si mesma e a metáfora da solução é essa interrogação permanente eventualmente constelada em uma forma inscrita na página. 

Deisi Beier “ataca o lado oposto do verbo” na tentativa de renomear a experiência. A poesia, através de sua vertigem, ao repropor os mundos interno e externo com “insana simetria” alcança uma “lucidez acumulada que mata aos poucos” o verismo do representado. Os versos de Breu rendado, como acontece com a tradição que se segue ao modernismo, tematizam na surdina os limites do discurso poético, o divórcio entre as palavras e os objetos que elas designam e a quase impossibilidade de precisar o impreciso. 

A poética do bosque, do labirinto circular, metáfora desse sistema de signos onde o leitor-fruidor é protagonista e vítima, onde decide perder-se de modo que sua aparente derrota se converta em êxito, se encontra embutida no ritmo do verso de Deisi Beier, vejamos, por exemplo, este trecho: “na poesia/ toda armadilha atrai/ leitura noturna em prata tramada”.  Notar a palavra rama dispersa anagramaticamente na sequência desses versos: 

...todA ARMAdilhA AtRAi
leituRA notuRnA eM pRAtA tRAMAdA

         Mas não é o apenas o leitor que tem a chance de perder o senso no espaço ambíguo do poema, a poeta também se candidata a abandonar o terreno da sua identidade e diz: “onde não estou/ precisamente ali começa minha/ escrita”. 

Em seu mais recente gesto de linguagem – a confirmação como um terceiro movimento –, Deisi Beier nos apresenta, através de sua imagética verbal, algo que, na falta de melhor definição, poderia ser nomeado como uma tópica do medo que vai repercutir em toda uma imagética da culpa, da falta e, portanto, da punição. Entretanto, mais do que com um “congresso internacional”, o leitor se confronta com o “escuro recesso” do medo (de onde, segundo Bandeira, “as fontes da vida” só fazem “sangrar inúteis por duas feridas”), já que, ao contrário de Drummond, a poeta circunscreve essa tópica num lugar aquém/além do social e do ideológico. O medo parece estar mais ligado à corporeidade do que ao espírito e à moralidade. Cumpre observar que os poemas abordam essa tópica tanto pelo lado da resignação, quanto pela vertente da recusa. 

Em muitos poemas de Breu rendado notamos palavras, sintagmas e versos que, por assim dizer, formam esse “conteúdo inessencial”, subsidiário, mas não irrelevante, a atravessar o conjunto. Eis aqui um breve levantamento: “temendo escutar tudo que digo”; “as costas vincadas do arrependimento”; “o embaraço da língua/ acovardada”; “a história e seus remorsos”; “o breu rendado de minhas culpas” (de onde sai o título do livro); “antecipando a expiação”; “os males secretos dormem de dia”; “cumpro a tarefa de salvar pela tentação”; “nascer foi um tanto de erros a corrigir”; “uma fome de lamparinas medrosas”; “meu medo ultrapassa as paredes”. Sobram exemplos. Evidentemente, Breu rendado não esgota aí a sua trama de significações. Essa particularidade temática forma um ruído de sentido integrado ao seu movimento de linguagem. Uma vereda a ser explorada pelo leitor interessado.

Na tolerância com a pressa e a comunicabilidade pop, exigidas pela realidade contemporânea, somos forçados a catalogar cada palavra na faixa mais estreita de seu significado. Felizmente, a contrapelo deste estado de coisas, há a experiência da poesia que leva a cabo a divisa carrolliana segundo a qual, no que toca a esta linguagem “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”. Deisi Beier dá conta disso com sucesso em seu Breu rendado. 

Ao mesmo tempo a poeta sabe que a poesia é uma forma de discurso que se situa de maneira ambivalente entre a vida ativa e a vida contemplativa. Todo poeta participa da vida radicalmente, isto é, por meio da linguagem almeja um mergulho cultural, social, existencial, político e estético. A vocação transgressiva e equívoca desse discurso – discurso que a um só tempo vivifica e mata a vida –, pela simples diferença com relação às demais formas de expressão verbal, exige essa participação desmedida tanto nos destinos do homem como nos destinos da poesia.

Finalmente, outras explorações a propósito da poética de Deisi Beier poderiam ser adiantadas de minha parte ao leitor, mas em respeito à sua liberdade de interpretação e ao espaço que se deve dispor em um prefácio para dizer algo sobre o livro que seja mais do que protocolar elogio, interrompo por aqui meus comentários com a convicção de que esse mesmo leitor cumprirá sua parte nesse jogo estético, ainda que temendo escutar tudo o que quer dizer lateralmente Deisi Beier com sua desafiadora poesia. Breu rendado agora lhe pertence. E os sentidos que venha ou não a alcançar serão irredutíveis à sua pessoa e ao seu repertório.

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Está aí a capa do meu terceiro livro de poesias, BREU RENDADO, pela Editora Movimento, lançado dia 31/8/2012, sexta-feira, na Palavraria Livraria e Café, em Porto Alegre. Nova postagem incluirá o prefácio, de Ronald Augusto.